sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Cinco horas da tarde*

do porto do silêncio zazen, parte a nau de osso e sangue: eu.
banhado em luz avermelhada
(enquanto desço a rua Sergipe),
penso se Maiakowski não escreve algum poema
que de alguma forma se reflete aqui em rubro crepúsculo.

singro o asfalto (tapete cintilante estendido morro abaixo)
entre meninas pré-púveres ensaiando a cópula em danças eróticas,
entre crianças frenéticas libertando-se do presídio escolar,
entre velhas sentadas nas varandas contemplando o oco de suas vidas passadas.

estranho ritmo, esse de cinco e poucos da tarde.
tudo parece reduzir a marcha,
e o que nos filmes é uma queda abrupta,
se dilata em um éon de Shiva.
uma liturgia aflora do âmago de tudo,
todos parecem parar de viver, e encenam
(é nessa hora que escrevo os meus poemas mais arquitetados).

avenida que divide Paripe. sinal vermelho.

fumadores de crack varrem o perímetro,
vorazes em busca de uma presa:
eles precisam de grana eles precisam precisam da pedra.
bares vomitam música alta e festiva:
os seres da noite começam a chegar e já tomam as primeiras cervejas.
carros são lavados desfazendo-se do pó do dia.
as ruas de baixo pululam de viaturas:
eles estão inspirados
eles querem ser notícia
eles querem aparecer nos tabloides televisivos
segurando um peixe miúdo e apresentá-lo como o maior traficante do cosmo.

os amigos trens aguardam na estação, vomitando pessoas.
eu, a nau de osso e vísceras, sigo a rua da estação,
e o mar de lava se oferece, cintilante,
tendo já a hóstia ígnea já completamente mergulhada.

um novo porto silencioso me aguarda:
colégio Barros Barreto,
espécie de retiro zen disfarçado de escola pública
incrustado na praia de Paripe.
lá, entre árvores, pássaros, ventos cantantes e cheiro de mar,
o Shotokan me ensina na dura prática,
o vazio que pare raios,
constantemente.

*Este poema é fruto de um exercício de criação proposto pelo blog http://gambiarraliteraria.blogspot.com. Nele eu descrevo, em 300 palavras, o caminho que faço a pé, todoas as Segundas, Quartas e Sextas, após uma seção de meditação em minha casa. Há uma versão menos enxuta do poema, que publicarei em breve aqui no DDD.

Um comentário:

Enzo de Marco disse...

Hello meu caro amigo
Mais um ano se passou e nosso encontro sempre fica p/ o proximo...
mais cara e incrivel o quanto as nossas vidas poder ser contadas em livros e por mais inusitada que apareça percebo que estamos num grande quadro de DALI com todas as anomalias possiveis (mentais, morais,sexuais,religiosas) etc...
grande abraço Cara