quinta-feira, 15 de novembro de 2012

99.


Descendo a ladeira vai o morto,

sobre o dorso da fera peluda,

que ao contrário está em outro estado

muito vivo de corpo e consciência.

E esta fera forma com seu dorso

a ladeira, e suas rugas são becos,

e os becos são berços urbanos

que embalam bebês cheios de ternura,

putas e beatos, e filhos assustados de psicopatas

vendo pornografia hard-core na calada do couro preto da noite eterna da fera.

E se papai me pega vendo esse vídeo?

Vai ser violento. Se ainda fosse de homem com mulher,

ele nem metia a colher, mas de homem com homem,

ali só se mete o cacete e se chupa o cacete e se papai vir isso

estou fodido e não é no sentido positivo do verbete.

Nos becos da fera o fogo arde,

e a vida fere,

e as feridas da fera são bocas vorazes

de lobos ferozes que babam ácido.

E as poças que se formam fumegam,

Principalmente quando as crianças, esquecidas do perigo,

trêfegas de fome, brincam dentro delas, deixando ali as suas carnes,

que se descolam dos seus ossos, junto com veias, nervos e dermes.

As mães choram ao verem suas crianças-esqueleto tiritando de frio,

e as proíbem de cruzarem os braços,

pois temem a figura formam quando fazem esse gesto.

“Mas é assim mesmo” dizem elas,

“pois a Fera é a Fera e antes dentro dela que lá fora!

Lá fora, dizem, há um morto descendo pelo lado escuro do dorso,

assobiando uma canção de arrepiar,

rumo à orelha esquerda da cabeça peluda.

Lindo será quando se arrepiarem os pelos da fera.”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Hecatônquiro 100

Uma poética bruta,
td a v c/ a tecnocracia oligofrênica
e a burrocracia que ri de mim
com seus dentes que antes de apodrecerem
emitem dez mil petições de às vezes
não as têm deferidas.

pontos esburotrágicos enfestados de vermes verdes,
loucos de heroína, transpirando anfetaminas e pus com graxa
(são vermes robóticos).

Os dentes querem o seu momento de merecido descanso,
mas os castelos-cartórios já lhes emitiram cartas de veto à morte,
e tudo resolveu fazer um estardalhaço pelo supremo direito
de se foder em paz.

Os buracos trágicos da democracia burguesa
me parecem Faustos Falsos com casacos de Gógol
repletos de cinzas de cigarro e veneno de rato.

Um dia,
ele passou merda dissolvida em mijo
por todo o corpo,
entrou numa igreja,
e ficou lá, numa beatitude puta,
num beat de viciado que perdeu as vísceras da mente
e ruma mudo rumo ao fim da vida.

domingo, 16 de setembro de 2012

Álgebra

Após cálculos complicadíssimos,
numa cifragem algébrica
ainda desconhecida pela humanidade,

descobriu,
estupefato:

"A vida não é breve.
Varia de mínima

a semibreve.

Faltava-lhe compreender o problema das pausas.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

MOLOCH NÃO ME QUER NEM COMO CAPACHO. OU RELATO DE UMA FOME. OU KNUT HAMSUN NÃO ESTAVA BRINCANDO. OU ALGUÉM VIU NO DISCHOVERY CHANEL QUANTO TEMPO UM SER HUMANO SUPORTA SEM SE ALIMENTAR?



Eu não sei o que é o inferno, mas deve ter a ver com um coração muito opresso e um bolso vazio. Deve ter fome, e a impossibilidade de conseguir alimento a não ser por métodos ultrajantes. Deve ter algo de culpa, e bastante de acusações e julgamentos. O Inferno deve ser definhar de fome enquanto duzentos milhões de juízes te observam num círculo monumental, e você é apenas a formiguinha no meio dos gigantes. Estar com fome um dia inteiro deve ter a ver com inferno, deve ser uma analogia cristalizada. E há quem creia em Deus, ou em deuses. Para mim seria terrível acreditar em Deus ou deuses, porque eu concluiria que todos eles são uns cretinos escrotos. Lovecraft cria em seres sobrenaturais, seres sádicos e fétidos, ávidos de poder e sacrifício. Kafka suspeitava de Deus, e a sua crença não era diferente da do bruxo de Providence, só que com engrenagens e papeladas e olhares frios de juízes, ah os juízes, “somos um mau pensamento que aconteceu na cabeça de Deus”, dizia K. Você sabe o que é estar com fome por um dia inteiro, e ir dormir com fome, e ver a sua garota ir para a companhia de parentes porque você não tem um centavo para um chiclete e depois você fica sozinho...você sabe o que é ficar só? Não digo só no seu quarto, eu falo de ser renegado pela sua família por motivos absurdos, porque eles são crentes xiitas e acham que você fez pacto com o demônio e acham que te ajudar seria como prolongar os dias de satã na face da terra.
Você sabe o que é ser um ser humano íntegro, e se dar conta de que a sua família acharia até uma boa se chegasse em sua varanda e de longe sentisse o fedor adocicado do seu cadáver e te encontrasse lá dentro putrefato com os seus fluidos já irrigando a terra pelas reentrâncias do piso e sendo pasto de moscas?
Fome. Quando eu li o livro mais punk de Knut Hamsun eu já sabia que aquilo cedo ou tarde iria acontecer comigo.
Às vezes eu consigo dormir com fome. Essa noite eu não consegui. Acho que é nesse ato que a cachaça entra em cena. Para beber não se faz necessário dinheiro. Então fecham-se as cortinas e era uma vez dignidade.
Existe uma pessoa da qual não faz mais sentido falar. Bukowski falou do dele até a velhice. Caso eu seja chamado para alguma entrevista de emprego, não poderei ir, não tenho dinheiro para passagem. E tem gente que teme uma revolução de tipo socialista! Por mim os ricos viravam suco. Não sou adepto de um revanchismo, mas você já assistiu “O Homem que Virou Suco”?
Não sei se sou budista. Muitos diriam que não sou budista porque fumo um cigarrinho sempre que posso, porque bebo um trago vez por outra ou porque falo palavrão. O que posso dizer com certeza e sem medo de erro é que para mim a simbologia budista é impressionante. Sabe quem habita o inferno mais profundo na cosmologia simbólica budista? Os fantasmas famintos. Dá um bom nome de banda, não? Os fantasmas famintos são seres que têm uma pança enorme, uma garganta da espessura de uma agulha, e uma bocarra medonha. Esse é o estágio mais distanciado da Iluminação, ou Bodhi. Esse estágio é pior que o estágio animal, porque o animal quer com muita voracidade, mas o que ele quer, ele consegue. No estágio de fantasma faminto você quer muito, porque já está há tempo demais privado, você tem ventre e boca enormes, mas não tem garganta, ou seja, não tem meios de conseguir o que quer. Aqui você na verdade não está apenas distante  do reino dos Deuses, ou Devas (lembrando que o budismo não é reencarnacionista, trata-se de uma alegoria sobre estados mentais), aqui você está distante mesmo do Reino Humano, aqui você está distante até mesmo do equilíbrio básico para prosseguir na vida. O budismo associa a fome ao inferno, e eu gosto disso.
Mas um fantasma faminto escreve? Eu estou com fome. Se eu quiser traduzir esse texto, resumir a ópera, sugar os floreios, tudo se resume a: eu estou com muita fome, não tenho grana para sair, não tenho parentes dispostos a ajudar, não tenho cara de pau para mendigar para amigos (que também não nadam em dinheiro e têm seus próprios problemas), não faço a menor idéia de quando irei me alimentar novamente, ou do que será minha vida de agora em diante. Definitivamente cheguei na barra mais pesada da vida que vivi até agora.
Mas um fantasma faminto escreve? O caso é que essa história toda de fantasmas, demônios e deuses não passa de alegoria. Não existem categorias rígidas de estados mentais em que se possa enquadrar as pessoas. A mente ferve, sobretudo a minha. Mas uma pessoa pode ficar muito mal, sim, e a sua mente pode ficar bastante monolítica, paralítica. Tente entabular uma conversa sobre o estilo indireto livre em Flaubert com um mendigo esfomeado que você vai ver...
A fome não alterou a minha personalidade. Alterou um pouco meus nervos. Estou escrevendo porque talvez a fome não tenha saído do meu estômago. Talvez seja excesso de consciência decorrente de anos de Zazen (meditação zen). Estou vivendo conscientemente cada segundo da fome, e já não sei se torço para ser chamado para uma entrevista de emprego ou não. Se eu não for chamado, fico mal. Mas se for chamado, posso ficar pior, pois não posso me locomover. Não consigo ver amigos, não consigo cumprir compromissos. Estou preso em casa, muito fraco e debilitado. Agora estou com uma sonolência que é na verdade um torpor. Vou na casa de um vizinho publicar isso, depois vou para a cama. Espero que eu acorde...

terça-feira, 6 de março de 2012

Leituras: Duas Narrativas Fantásticas. F. Dostoievski.






Duas Narrativas Fantásticas: A dócil e O Sonho de um Homem Ridículo.
Fiódor Dostoievski.
Tradução, prefácio e notas de Vadim Niktin.
Editora 34 (Coleção LESTE).

A Dócil




“Pois já faz seis horas que eu quero
ver claro e não encontro meio de
juntar as ideias num ponto.”




Ele foi acusado de covarde no regimento onde ostentava uma “farda brilhante”. Diante da sua mulher morta, ele tenta organizar a mente em frangalhos. Após a degradação total, ele recebe uma herança, e estabelece-se num negócio (usurário). Então passa a nortear a sua vida baseado num racionalismo pragmático, tornando-se um cultor do isolamento e dos relacionamentos frios. Ele é leitor sensível, cita de Goethe a Púchkin, o que é só um entre os inúmeros temperos que realçam a sua contradição. Ele tenta dar mais sentido à vida contratando uma “mocinha” para ocupar o espaço de esposa na sua casa, visando assim aplainar a existência, escamoteando-lhe as contradições que lhe são próprias mas que para ele são infernizantes. Então os sentimentos, não suportando serem varridos para debaixo do samovar, emergem num turbilhão, e terminam por subtrair-lhe o chão subitamente quando a sua mulher, após meses de um mutismo sufocante entre os dois, atira-se da janela, abraçada a um ícone da Virgem.
Publicada pela primeira vez em novembro de 1876, no Diário de um escritor, revista totalmente capitaneada por Dostoiévski, e baseada num caso verídico descoberto pelo russo leitor compulsivo de jornais, A Dócil prova que, em literatura, tamanho não é documento. Dostoiévski cm pôs em poucas páginas uma obra magnífica, em que o homano se revela vibrante de contraditoriedade, e o tema da eternidade é perscrutado diante de um flagrante quotidiano.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

traga sua alma amanhã,
quando você vier buscar aquele livro,
e não se esqueça de esmerilhá-la
porque o mercado é exigente.

sugaram a minha toda ontem
enquanto eu, distraído,
dava de comer aos meus olhos cansados.

vamos vender também o que nos resta de ossos,
sobretudo a espinha dorsal,
um amigo meu os vendeu ontem.
até que ele se vira se arrastando por aí,
só com pele e carne,
espetáculo meio triste,
mas o ruim mesmo são as formigas,
e os cães que mijam em qualquer lugar.

e essa inteligência que você tem no bolso?
cuidado, a essa hora na rua...está fazendo volume.
deixe-a aqui em casa
que eu estou precisando mesmo
de um peso de papel.

boa noite.
durma bem.

sonhos?!

não os tenho mais,
vendi a um poderoso mercador,
os dele estavam minguados,
aguados.
os meus queimavam, aguardente,

meus dentes?

não. preciso deles.
às vezes não entendo direito a novela,
e preciso mastigar por horas a fio
antes de dormir.