Eu não sei o que é o inferno, mas deve ter a ver com um
coração muito opresso e um bolso vazio. Deve ter fome, e a impossibilidade de
conseguir alimento a não ser por métodos ultrajantes. Deve ter algo de culpa, e
bastante de acusações e julgamentos. O Inferno deve ser definhar de fome
enquanto duzentos milhões de juízes te observam num círculo monumental, e você
é apenas a formiguinha no meio dos gigantes. Estar com fome um dia inteiro deve
ter a ver com inferno, deve ser uma analogia cristalizada. E há quem creia em
Deus, ou em deuses. Para mim seria terrível acreditar em Deus ou deuses, porque
eu concluiria que todos eles são uns cretinos escrotos. Lovecraft cria em seres
sobrenaturais, seres sádicos e fétidos, ávidos de poder e sacrifício. Kafka
suspeitava de Deus, e a sua crença não era diferente da do bruxo de Providence,
só que com engrenagens e papeladas e olhares frios de juízes, ah os juízes,
“somos um mau pensamento que aconteceu na cabeça de Deus”, dizia K. Você sabe o
que é estar com fome por um dia inteiro, e ir dormir com fome, e ver a sua
garota ir para a companhia de parentes porque você não tem um centavo para um
chiclete e depois você fica sozinho...você sabe o que é ficar só? Não digo só
no seu quarto, eu falo de ser renegado pela sua família por motivos absurdos,
porque eles são crentes xiitas e acham que você fez pacto com o demônio e acham
que te ajudar seria como prolongar os dias de satã na face da terra.
Você sabe o que é ser um ser humano íntegro, e se dar conta
de que a sua família acharia até uma boa se chegasse em sua varanda e de longe
sentisse o fedor adocicado do seu cadáver e te encontrasse lá dentro putrefato
com os seus fluidos já irrigando a terra pelas reentrâncias do piso e sendo
pasto de moscas?
Fome. Quando eu li o livro mais punk de Knut Hamsun eu já
sabia que aquilo cedo ou tarde iria acontecer comigo.
Às vezes eu consigo dormir com fome. Essa noite eu não
consegui. Acho que é nesse ato que a cachaça entra em cena. Para beber não se
faz necessário dinheiro. Então fecham-se as cortinas e era uma vez dignidade.
Existe uma pessoa da qual não faz mais sentido falar.
Bukowski falou do dele até a velhice. Caso eu seja chamado para alguma
entrevista de emprego, não poderei ir, não tenho dinheiro para passagem. E tem
gente que teme uma revolução de tipo socialista! Por mim os ricos viravam suco.
Não sou adepto de um revanchismo, mas você já assistiu “O Homem que Virou
Suco”?
Não sei se sou budista. Muitos diriam que não sou budista
porque fumo um cigarrinho sempre que posso, porque bebo um trago vez por outra
ou porque falo palavrão. O que posso dizer com certeza e sem medo de erro é que
para mim a simbologia budista é impressionante. Sabe quem habita o inferno mais
profundo na cosmologia simbólica budista? Os fantasmas famintos. Dá um bom nome de banda, não? Os fantasmas
famintos são seres que têm uma pança enorme, uma garganta da espessura de uma
agulha, e uma bocarra medonha. Esse é o estágio mais distanciado da Iluminação,
ou Bodhi. Esse estágio é pior que o estágio animal, porque o animal quer com
muita voracidade, mas o que ele quer, ele consegue. No estágio de fantasma
faminto você quer muito, porque já está há tempo demais privado, você tem
ventre e boca enormes, mas não tem garganta, ou seja, não tem meios de
conseguir o que quer. Aqui você na verdade não está apenas distante do reino dos Deuses, ou Devas (lembrando que
o budismo não é reencarnacionista, trata-se de uma alegoria sobre estados
mentais), aqui você está distante mesmo do Reino Humano, aqui você está
distante até mesmo do equilíbrio básico para prosseguir na vida. O budismo
associa a fome ao inferno, e eu gosto disso.
Mas um fantasma
faminto escreve? Eu estou com fome. Se eu quiser traduzir esse texto,
resumir a ópera, sugar os floreios, tudo se resume a: eu estou com muita fome, não tenho grana para sair, não tenho parentes
dispostos a ajudar, não tenho cara de pau para mendigar para amigos (que também
não nadam em dinheiro e têm seus próprios problemas), não faço a menor idéia de
quando irei me alimentar novamente, ou do que será minha vida de agora em
diante. Definitivamente cheguei na barra mais pesada da vida que vivi até
agora.
Mas um fantasma
faminto escreve? O caso é que essa história toda de fantasmas, demônios e
deuses não passa de alegoria. Não existem categorias rígidas de estados mentais
em que se possa enquadrar as pessoas. A mente ferve, sobretudo a minha. Mas uma
pessoa pode ficar muito mal, sim, e a sua mente pode ficar bastante monolítica,
paralítica. Tente entabular uma conversa sobre o estilo indireto livre em
Flaubert com um mendigo esfomeado que você vai ver...
A fome não alterou a minha personalidade. Alterou um pouco
meus nervos. Estou escrevendo porque talvez a fome não tenha saído do meu
estômago. Talvez seja excesso de consciência decorrente de anos de Zazen
(meditação zen). Estou vivendo conscientemente cada segundo da fome, e já não
sei se torço para ser chamado para uma entrevista de emprego ou não. Se eu não
for chamado, fico mal. Mas se for chamado, posso ficar pior, pois não posso me
locomover. Não consigo ver amigos, não consigo cumprir compromissos. Estou
preso em casa, muito fraco e debilitado. Agora estou com uma sonolência que é
na verdade um torpor. Vou na casa de um vizinho publicar isso, depois vou para
a cama. Espero que eu acorde...
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