quarta-feira, 22 de junho de 2011

Saída de Emergência



Marcos chegou em casa às dez e meia da noite. Mais um dia de busca por emprego. Mais uma entrevista infrutífera. Mais uma promessa de “estaremos entrando em contato caso surja uma vaga”. Desde que concluíra, a muito custo, o ensino médio, a sua vida vem sendo uma Odisséia de sub-empregos, o que não raro o fazia sentir-se sub-humano. Ele nunca soube o que é um emprego seguro, e um mestre de obras para ele equivalia a um Escolhido dos Deuses.
Nada de comida nos armários enferrujados do quarto-cozinha quentíssimo e mal pintado. Na geladeira, só um restinho de feijão e uma colher de sopa de arroz, além de um ovo, o último. Que faria no dia seguinte? Se ainda fosse um dos queridinhos da família, poderia pedir um dinheiro emprestado, mas, ainda que conseguisse o empréstimo, como pagaria? E quando esgotasse o dinheiro emprestado, o que faria? Pediria mais e mais e mais e mais? Ora, para tal prática há um nome preciso no léxico da língua portuguesa: mendicância. E essa palavra não parava de ecoar na mente de Marcos, que sob o chuveiro, agachado, lembrava de todos os mendigos que vira naquele dia. Mendigos nas calçadas, mendigos nos ônibus, alguns necessitados de alimento, outros já presas do crack...
Saiu do banho. Se enxugou com uma toalha esburacada. Acendeu a única boca que funcionava no fogão velho, e colocou sobre ela a única frigideira que possuía, e que já estava totalmente amassada e sem cabo. Colocou um filete de óleo de soja, e quando este estava suficientemente aquecido, estalou o derradeiro ovo. O mal-cheiro que escendeu da frigideira e a coloração escura do ovo fizeram Marcos sentir-se o mais desafortunado dos homens. O ovo, o último, estava estragado.
Essa noite só haveria uma porção de feijão velho e uma colher de sopa de arroz endurecido. Depois, dormiria, para não arriscar-se a sentir fome novamente. No outro dia iria de estabelecimento em estabelecimento do seu próprio bairro em busca de qualquer serviço pelo qual alguém estivesse disposto a pagar. Tentaria também oferecer-se para capinar quintais, e procuraria algum pedreiro que aceitasse ajudante, mesmo sabendo que não tinha a menor qualificação para isso.
Mas, supondo-se que Marcos conseguisse alguma obra para servir como ajudante, e quando a obra acabasse? Haveriam tantas obras assim para mantê-lo alimentado por um ano? A mesma indagação se aplica à capinação de quintais.
Precisava de um emprego, rápido. Mas aos quarenta anos nenhum call Center o aceitava, nenhum Buffet, nenhum restaurante, nada! Estava desempregado, sem qualificação, sem perspectiva, e quando olhava para o seu futuro só via três opções: a mendicância, o crime e o suicídio.
Marcos não tinha o menor talento para o crime.
Sentou na cama. Olhou para a sua pequena biblioteca. Velhos companheiros: Lorca, Hemmingway, Kafka..., e que diferença faz agora? Ganharia uma bolsa do governo por entender Wittgenstein? Por ter lido e relido “Os Irmãos Karamazov”? haveria uma vaga de professor de literatura russa nas escolas públicas esperando por ele? Não, ele não tinha os canudos, não tinha os passaportes, estava impedido de voar por não atender às exigências burocráticas, como na música de Raul Seixas.
Quando criança sua brincadeira predileta era de professor. Aos 14, sonhava em lecionar filosofia, e incitar jovens a adotarem posturas mais críticas, poéticas e combativas.
Pensou nos seus sonhos de moleque, pensou nos espancamentos sádicos ministrados por seu pai. Pensou na sua mãe atirando-se de um prédio com a cabeça encharcada de tarjas-pretas, um dia depois da pior surra da sua curta vida, também aplicada pelo carrasco oficial da casa, o pater famílias, como dizia Marcos nos seus poemas. Finalmente chorou, amargamente, com esgares lancinantes que assustariam os vizinhos, se estes não estivessem vidrados no último capítulo da novela.
Correu para a cozinha. Pegou o álcool.
Encharcou os livros na estante, riscou um fósforo, ateou fogo, e deitou-se na cama em posição fetal. Em poucos minutos toda a casa ardia em chamas. Os vizinhos da pequena vila onde morava chamaram os bombeiros, mas estes chegaram tarde demais. Não para salvar a casa, mas para salvar o homem que jazia agora irreconhecível, carbonizado, assemelhando-se a uma semente de feijão preto fumegante. O cheiro da carne humana tostada era horripilante e nauseabundo.
Os parentes de Marcos chegaram, logo após os bombeiros, e todos chegaram logo após o fim da novela. A mãe de marcos chorava de verdade, embora tarde. Outros pareciam chorar, mas na verdade tinham os olhos irritados pela fumaça. Outros ainda choravam mais verdadeiramente que a mãe de Marcos, eram os donos do imóvel. Pancho, o gatinho preto de Marcos e sua única companhia, chegou, entrou na casa, olhou tristemente para o corpo do dono e fugiu, para nunca mais ser visto.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Fresta



1.
A Coisa estava ali, no meio da rua. Ninguém sabia ao certo o que era, nem de onde tinha vindo. Nenhum dos observadores sabia dizer com exatidão como tinha aparecido.
Era grande, e em tudo assemelhava-se a um tumor. Estava úmido, exalava odores pungentes e indescritíveis. E pulsava, latejando em pontos variados.
Quando a polícia chegou, todos se afastaram, com os olhos vidrados na Coisa, tão vidrados que nem perceberam que aqueles homens não trajavam uniformes de nenhuma força militar brasileira. Cinco homens cobriram a coisa com uma espécie de lona que ajustou-se à coisa imediatamente após entrar em contato com a sua superfície úmida.
A Coisa não pulsou mais, pareceu petrificar-se, e os cinco homens rolaram-na para dentro de um caminhão-baú preto. A epiderme do asfalto ainda testemunhava que ali havia estado algo enorme, esférico e úmido, e tal testemunho era dado através de um disco de fluido que refletia distorcidamente as luzes da noite citadina.
No outro dia o âncora do telejornal noticiou que um jogo militar havia sido realizado na Ladeira da Fonte, ao lado do Teatro Castro Alves, um jogo que envolvia reações a armas biológicas. Em tal jogo, segundo o âncora, havia sido usada uma réplica de bomba bio-mecânica-bacteriológica engendrada por um grande estúdio de efeitos cinematográficos.
Com o tempo, a história foi digerida pela população. Com exceção dos transeuntes mais desconfiados, que se lembravam muito bem de não ter visto movimentação militar alguma antes daquela coisa simplesmente aparecer no meio da ladeira.

2.
Dona Brígida, moradora de rua, sentada num banco do largo do Campo Grande, lembrava, catatônica, do que aparentemente só ela vira: Um ser indescritível e titânico esgueirando-se através do céu noturno, abrindo-lhe uma fresta como se esse fosse uma cortina de veludo, colocando cuidadosamente aquela massa pulsante no meio da Ladeira da Fonte. Era como se a cidade de Salvador fosse uma casinha de boneca que dona Brígida tivera quando criança. Mas não foram só casinhas de boneca que estiveram presentes na distante infância da simpática habitante das ruas do Centro. As visões também, e numa tal freqüência que a deixaram transtornada, alcoólatra, execrada da família e da sociedade dita normal.
Mas nenhuma visão se equiparava àquela.
Daquela noite em diante, dona Brígida não saiu mais do Campo Grande.
Jônatas, um garotinho de onze anos que fazia malabares no farol do Largo dos Aflitos, lhe trazia refeições frugais uma vez por dia (achava-a parecida mãe morta por um soldado da polícia).
A velha não falava mais, só olhava o dia inteiro para o céu e rascunhava uns papéis puídos. Jônatas achava os rabiscos parecidos com os que via nas revistas em quadrinhos que folheava de vez em quando na banca de revista do Shopping Piedade, e como andava cansado de ser escurraçado pelo jornaleiro, dera para entreter-se com os rabiscos de Dona Brígida. Imaginava-se cavalgando aqueles seres enormes que voavam livres entre as estrelas e espiavam furtivos fendas abertas nas cascas dos planetas.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Reencontro com K.

Kafka, por R. Crumb

O sanatório estava lotado. O homem que havia chegado ensopado até os ossos tiritantes estava tartamudeante de tanto frio. A exemplo de um personagem seu, ninguém entendia suas embromações. Estava extremamente debilitado. Estava com uma tuberculose avançada. O homem foi colocado num leito próximo ao de um moribundo agonizante que tremia e gritava convulsionado intermitentemente.
Algum tempo depois o homem foi transferido daquele amontoado de renegados enfermos para um sanatório particular, o Kierling, em Klosterneueberg, perto de Viena. Ali, no dia 3 de Junho de 1924, há 87 anos, morreu Franz Kafka, aos quarenta e quatro anos.

Até ontem tal informação jazia adormecida sob o mar agitado do meu consciente. Mas por um lance de dados da sincronicidade, eu, que estava decidido a ler “Os Irmãos Karamazov”, do velho Dos, enquanto farejava a prateleira da Biblioteca Pública Anísio Teixeira, senti aflorar em mim uma incontrolável vontade de reler as obras de K.






Acabo de reler “A Metamorfose”. Acabo de apreender nuances antes ignorados pela mente apressada deste pequeno e profundo lago. Acabo de recordar, após ter acompanhado o último e curto suspiro de Gregor Samsa, que amanhã, dia 3 de Junho de 2012, farão 88 anos que o meu irmão espiritual chegou ao porto último da existência individual.




Gregor Samsa, rascunho de Rafael Medeiros

Um dia, meu tio Jorge resolveu descartar uns papéis que, segundo ele, estavam sob forte suspeita de contaminação por ratos. No meio dessa pequena proto-pira eu identifiquei um livro. O seu título: A Grande Muralha da China. O autor: Franz Kafka. Eu tinha acabado de ler o primeiro “romance” da minha vida, uma historinha escrita por um Thelemita Crowleyano arrependido e hoje católico confesso um tal Paulo Coelho. Antes eu havia lido alguns contos de livros didáticos, todos, diga-se de passagem, melhores que a tal opereta besta do PC. Ali estava eu, diante do monte de papeis que dali a pouco arderiam. Ali estava eu emerso de uma paisagem bucólica, prestes a mergulhar no demonismo claustrofóbico de um austríaco desencaixado. Peguei o livro. Meu tio me deu algumas broncas, afirmou ser arriscado tatear tudo que jazia ali naquela pré-Geena. Mas o livro gritava, estávamos imantados, e eu não opus resistência. Foi o primeiro Grande Livro que eu li, e desde então, Franz Kafka habita em mim, e assim será pelo resto dos meus dias, até que este asilo azul oval cobre de mim o escasso fôlego que ele a tanto custo me empresta.