segunda-feira, 6 de junho de 2011

Fresta



1.
A Coisa estava ali, no meio da rua. Ninguém sabia ao certo o que era, nem de onde tinha vindo. Nenhum dos observadores sabia dizer com exatidão como tinha aparecido.
Era grande, e em tudo assemelhava-se a um tumor. Estava úmido, exalava odores pungentes e indescritíveis. E pulsava, latejando em pontos variados.
Quando a polícia chegou, todos se afastaram, com os olhos vidrados na Coisa, tão vidrados que nem perceberam que aqueles homens não trajavam uniformes de nenhuma força militar brasileira. Cinco homens cobriram a coisa com uma espécie de lona que ajustou-se à coisa imediatamente após entrar em contato com a sua superfície úmida.
A Coisa não pulsou mais, pareceu petrificar-se, e os cinco homens rolaram-na para dentro de um caminhão-baú preto. A epiderme do asfalto ainda testemunhava que ali havia estado algo enorme, esférico e úmido, e tal testemunho era dado através de um disco de fluido que refletia distorcidamente as luzes da noite citadina.
No outro dia o âncora do telejornal noticiou que um jogo militar havia sido realizado na Ladeira da Fonte, ao lado do Teatro Castro Alves, um jogo que envolvia reações a armas biológicas. Em tal jogo, segundo o âncora, havia sido usada uma réplica de bomba bio-mecânica-bacteriológica engendrada por um grande estúdio de efeitos cinematográficos.
Com o tempo, a história foi digerida pela população. Com exceção dos transeuntes mais desconfiados, que se lembravam muito bem de não ter visto movimentação militar alguma antes daquela coisa simplesmente aparecer no meio da ladeira.

2.
Dona Brígida, moradora de rua, sentada num banco do largo do Campo Grande, lembrava, catatônica, do que aparentemente só ela vira: Um ser indescritível e titânico esgueirando-se através do céu noturno, abrindo-lhe uma fresta como se esse fosse uma cortina de veludo, colocando cuidadosamente aquela massa pulsante no meio da Ladeira da Fonte. Era como se a cidade de Salvador fosse uma casinha de boneca que dona Brígida tivera quando criança. Mas não foram só casinhas de boneca que estiveram presentes na distante infância da simpática habitante das ruas do Centro. As visões também, e numa tal freqüência que a deixaram transtornada, alcoólatra, execrada da família e da sociedade dita normal.
Mas nenhuma visão se equiparava àquela.
Daquela noite em diante, dona Brígida não saiu mais do Campo Grande.
Jônatas, um garotinho de onze anos que fazia malabares no farol do Largo dos Aflitos, lhe trazia refeições frugais uma vez por dia (achava-a parecida mãe morta por um soldado da polícia).
A velha não falava mais, só olhava o dia inteiro para o céu e rascunhava uns papéis puídos. Jônatas achava os rabiscos parecidos com os que via nas revistas em quadrinhos que folheava de vez em quando na banca de revista do Shopping Piedade, e como andava cansado de ser escurraçado pelo jornaleiro, dera para entreter-se com os rabiscos de Dona Brígida. Imaginava-se cavalgando aqueles seres enormes que voavam livres entre as estrelas e espiavam furtivos fendas abertas nas cascas dos planetas.

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