quinta-feira, 2 de junho de 2011

Reencontro com K.

Kafka, por R. Crumb

O sanatório estava lotado. O homem que havia chegado ensopado até os ossos tiritantes estava tartamudeante de tanto frio. A exemplo de um personagem seu, ninguém entendia suas embromações. Estava extremamente debilitado. Estava com uma tuberculose avançada. O homem foi colocado num leito próximo ao de um moribundo agonizante que tremia e gritava convulsionado intermitentemente.
Algum tempo depois o homem foi transferido daquele amontoado de renegados enfermos para um sanatório particular, o Kierling, em Klosterneueberg, perto de Viena. Ali, no dia 3 de Junho de 1924, há 87 anos, morreu Franz Kafka, aos quarenta e quatro anos.

Até ontem tal informação jazia adormecida sob o mar agitado do meu consciente. Mas por um lance de dados da sincronicidade, eu, que estava decidido a ler “Os Irmãos Karamazov”, do velho Dos, enquanto farejava a prateleira da Biblioteca Pública Anísio Teixeira, senti aflorar em mim uma incontrolável vontade de reler as obras de K.






Acabo de reler “A Metamorfose”. Acabo de apreender nuances antes ignorados pela mente apressada deste pequeno e profundo lago. Acabo de recordar, após ter acompanhado o último e curto suspiro de Gregor Samsa, que amanhã, dia 3 de Junho de 2012, farão 88 anos que o meu irmão espiritual chegou ao porto último da existência individual.




Gregor Samsa, rascunho de Rafael Medeiros

Um dia, meu tio Jorge resolveu descartar uns papéis que, segundo ele, estavam sob forte suspeita de contaminação por ratos. No meio dessa pequena proto-pira eu identifiquei um livro. O seu título: A Grande Muralha da China. O autor: Franz Kafka. Eu tinha acabado de ler o primeiro “romance” da minha vida, uma historinha escrita por um Thelemita Crowleyano arrependido e hoje católico confesso um tal Paulo Coelho. Antes eu havia lido alguns contos de livros didáticos, todos, diga-se de passagem, melhores que a tal opereta besta do PC. Ali estava eu, diante do monte de papeis que dali a pouco arderiam. Ali estava eu emerso de uma paisagem bucólica, prestes a mergulhar no demonismo claustrofóbico de um austríaco desencaixado. Peguei o livro. Meu tio me deu algumas broncas, afirmou ser arriscado tatear tudo que jazia ali naquela pré-Geena. Mas o livro gritava, estávamos imantados, e eu não opus resistência. Foi o primeiro Grande Livro que eu li, e desde então, Franz Kafka habita em mim, e assim será pelo resto dos meus dias, até que este asilo azul oval cobre de mim o escasso fôlego que ele a tanto custo me empresta.

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