quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Transcrições fiéis de anotações repentinas no meu caderno


Sobre Kata, Zen e Cigarros
Ou
Agora percebo que escapei de uma cilada
Ou
Um dedo apontando para a lua não é a lua
Ou
Não é a colher que entorta, é você que entorta
Ou
Arremedo fragmentário de uma pequena canção de mim mesmo
Ou
No fundo há a Vontade de Potência
Ou
Um homem sem vícios é um homem fraco
Ou
Pequeno elogio do prazer
(Transcrição fiel de anotação no meu diário)




O kata é meditação em movimento, e o karate é o meu mais novo vício.

Acabei parando de fumar, e não tenho nenhum Deus para agradecer por isso, sobretudo porque não acredito num Diabo que me fazia fumar.

Não sinto remorso por ter fumado. Fumar é legal, mas o cigarro tolhia o prazer da minha prática de karate, que é uma das artes marciais que mais exigem do corpo para quem quer fruir mais plenamente dela. Um vício acabou sobrepujando outro.

Há coisas escondidas na prática do karate, sobretudo no kata, que só quem ama essa arte conhece, embora não saiba explicar, e nisso a influência do Zen é flagrante. Na verdade, o Karate e demais artes marciais japonesas não são apenas “influenciadas” pelo Zen. Elas, de certa forma, contém em si TODO o Zen. Não é à toa que os monges antigos praticavam a arte marcial no mesmo local em que praticavam meditação: o dojo.

Desde que comecei a praticar Karate e a estudar o Budismo, tiveram início uma série de mudanças no meu organismo e comportamento. Mas tais mudanças distam milhas e milhas das pseudo-mudanças dos convertidos evangélicos desesperados. Na verdade, passei a analisar a minha vida de forma muito mais lúcida, e uma das sacadas(insights?) que eu tive sobre mim mesmo foi justamente acerca das minhas investidas místico-religiosas. Uma bolha de sabão explodiu e eu percebi, num ploft!, que vinha me enfiando em religiões teístas (pan ou mono), motivado por um medo de mim mesmo, sobretudo do meu incurável ateísmo e materialismo. Mas as leituras budistas, de poesia da linhagem de Whitman, o Karate e a prática do Zazen (meditação zen), acabaram ajudando-me a re-conciliar-me de uma vez com a matéria, e sobretudo comigo mesmo. É importante pontuar que não se trata aqui de uma conversão, tampouco de um convencimento, como é no caso do cristianismo. Resumindo tudo em termos Zen: os livros, a meditação, e o Karate-do atuaram em minha vida como um dedo apontando para a lua, jamais como a lua “em si”, até porque nada existe em si e por si só, e o dedo é uma metáfora mutante, ou contingente (termo mais em voga).

É engraçado observar que meia dúzia de amigos meus converteram-se ao evangelismo (com ou sem igreja), adotando posturas monásticas (portanto hipócritas), enquanto eu, aos 26 anos registro num caderno de repentes (mon coeur mis a nu) o meu casamento definitivo com minha humanidade/animalidade. Ou seja, reconhecer os limites da existence e agir dentro deles, valendo-me de táticas e estratégias plausíveis (e nisso eu sou um tanto pragmatista).

Veja o caso do cigarro, nenhum dos motivos costumeiros me convenceriam a parar: medo da morte, inferno, punição, consciência, um infantil e jesuítico “amor à vida”, medo do sofrimento/dor, ET Cetera. Eu só parei defato, de forma natural (no sentido taoísta), quando topei acidentalmente com um novo vício, que me proporciona um bônus imenso (prazer), e absolutamente nenhum ônus, e aqui eu me refiro ao Karate, já que nem mesmo o Zen me impediria de fumar, porque além de eu não seguir um “manual definitivo de conduta Zen” (o que a Bíblia é para os cristãos), o mesmo não se assenta sobre bases ético-moralistas. Na verdade, quem está habituado à hagiografia cristã, se espantaria ao dar uma breve olhada nas biografias dos antigos mestres zen-budistas. Muitos deles eram bebedores homéricos, fumantes compulsivos, quando não comedores de ópio, haja vista Milarepa, um eminente mestre zen, e ao mesmo tempo espécie de proto-beatnik.

Outro efeito espantoso do karate sobre mim, em especial a prática do kata, é uma crescente consciência de mim enquanto CORPO, do que decorre uma progressiva descentralização da consciência, o que me afasta mais e mais do espiritualismo, idealismo, e do culto romântico e daninho ao que nos acostumamos a chamar de “mente”, ou pelo menos uma espécie de “esticamento” da mesma. Quando estou num treino de luta com contato (jiu-ipon-kumite), tenho a nítida impressão de que a minha “mente” se espalha por todos os meus membros. De certa forma, não penso só com a cabeça, mas também os meus membros possuem formas particulares de consciência. E isso é puro Zen, pois aí temos a velha questão da “sede do pensamento” (a mente está mais na cabeça ou no pé?).

Tenho tirado cada vez mais filosofia prática da luta. A luta se assemelha à vida e à arte. Em ambas é urgente o golpe certeiro, ou a esquiva eficaz (mais freqüente).

Quando eu olho para trás, vejo um homem que dos 0 aos 20 anos ignorava que tinha pés, mãos, braços, coxas..., era como se uma nuvem espessa me acompanhasse para onde quer que eu fosse. Uma nuvem que cobria tudo do pescoço para baixo, com exceção de uma clareira no pênis. É claro que quando eu era garçom usava todos os meus membros. Mas quem disse que o trabalho foi criado para nos deixar mais cônscios de nós mesmos? (e aqui eu fico um tanto marxiano).

Fiel aplicador do princípio de wu-wei que sou, não pretendo com a publicação destas notas um tanto apologéticas prescrever modos de vida (liberanos Domine!), até porque não encontrei nada que se possa chamar “modo de vida”, sendo esta um fluxo constante impossível de represar em módulos ou fôrmas. Apenas, ao modo de Whitman ou Thoreau, compartilho com quem lê este blog, anotações sobre a minha “Estrada Aberta”. Sobretudo sobre os efeitos que o princípio do prazer (ah, Fourier, porque te abandonaram?!) e autenticidade têm exercido sobre meu ser/perceber/estar-no-mundo, sobre minha existência. Mas como creio que todo discurso traz implícitas marcas de intencionalidade, admito que algo permeia as entrelinhas destas notas: uma tentativa de mostrar o quão daninha pode ser a opção pela conversão religiosa e tentativas desesperadas de fugir do que nós realmente somos, macacos pelados.

Rafael Medeiros
24/09/10
03:57h

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