terça-feira, 4 de maio de 2010

Algo sobre terror noturno



Ok, my friends, aqui vai um repente num intervalo de aula, no estilo twiter.
Quando eu era criança, não dormia jamais com a luz apagada. Tinha um medo irracional do escuro. Mas não de qualquer escuro, mas do escuro da hora de dormir, quando eu sei que todo mundo dorme, e as fortalezas do mundo estão mais vulneráveis.
Cresci, consegui dormir com a luz apagada, mas algo mais terrível me atingiu. Por vezes eu acordava gritando, apavorado, totalmente indiferente a tentativas de consolo.
Uns dois anos após o início dos episódios, a minha família assistia ao Globo Repórter, que na ocasião falava sobre distúrbios do sono (e não sobre bichos ou dietas). Qual não foi a minha surpresa ao atravessar a sala e ver a cena que brotava da tela: um garoto mais ou menos da minha idade, de pé sobre a cama, gritava apavorado, totalmente indiferente às tentativas de consolo. Não era pesadelo, não era simples medo, senhoras e senhores, descobri-me portador de TERROR NOTURNO!

Eis a descrição enciclopædica:


Terror Noturno
Pesadelos são parte da natureza humana, entretanto, existe um tipo raro de fenômeno ameaçador durante o sono que não é exatamente como um pesadelo. Ele é chamado de "terror noturno"ou "Pavor Nocturnus" e é um severo distúrbio do sono, consistindo de ataques de terror agudo emergindo do sono profundo sem sonhos. É acompanhado por violentos movimentos corporais, agitação extrema, gritos, gemidos, falta de ar, suor, confusão, e em alguns casos, fuga da cama ou do quarto, comportamento destrutivo e agressão dirigida a objetos ou contra eles mesmos ou outras pessoas. Feridas, fraturas e lesões podem ocrrer em consequência.
O terror noturno ocorre durante a fase do sono não-REM, geralmente dentro de uma hora após o sujeito ir para a cama. Um episódio pode acontecer em qualquer lugar e durar de cinco a vinte minutos enquanto o sujeito ainda está sonolento. Os olhos podem se abrir. O paciente geralmente é incapaz de se lembrar de qualquer coisa após o acontecido.
Terror noturno pode coincidir com sonambulismo, em cujo caso andar e correr ocorre em conjunção com gritos, saltos e agitação violenta.
Durante o ataque de terror noturno, existe uma superativação do sistema nervoso autônomo simpático, incluindo dilatação das pupilas, sudorese, aumento nas taxas respirátórias e cardíaca, e aumento na pressão arterial. A taxa do coração (taquicardia) pode aumentar até 160 a 170 batimentos por minuto (o normal geralmente é de 60 a 100 no adulto), os quais são maiores que aqueles ocorrendo durante os episódios de estresse mais severos.
Fonte:http://www.virtual.epm.br/material/tis/curr-bio/trab2003/g3/terror.html

Pois bem, o caso ficou guardado como um segredo de família. Os episódios se repetiam duas a três vezes ao ano, e eu segui a vida aceitando mais esta esuisitice.

Eu jamais consegui me recordar de algo racional que tivesse provocado o pavor. Mas depois que me engajei em estripulias tântrico-psíquicas (e depois que li "A Ilha, de Huxley), resolvi tentar me reportar ao momento do episódio mais recente. Resultado: eu conseguia evocar o pavor em toda sua substancialidade. Pavor puro, com tudo que acarreta.
Mas durante tais experiências eu me mantia plenamente desperto (quem pratica zazen sabe o que isso significa), e jamais o episódio me "obsediou" enquanto eu estava em vigília, o que já me enquadraria numa esquizofrenia ou adjacências. A experiência REAL era inimitável.

Por volta dos 18 anos, eu já tinha lido muita coisa a respeito de técnicas do êxtase, enteógenos, xamanismo, respiração holotrópica, mito da MENTE NORMAL e afins. Não demorou para eu chegar à conclusão de que eu era assaltado por um estado não-ordinário de consciência, só que contra a minha vontade. Uma espécie de narco-anarco-transe não passível de indução.

Ante a total impotência da minha parte na direção de analisar, induzir ou julgar o fenômeno, deixei a coisa entregue ao laissez faire.
Nesse ínterim, foi-se desenvolvendo meu apreço por filmes de terror. Eu os assisti aos montes, até que um dia, na casa de minha avó, com meu tio Jorge, assisti ao filme "O Último Portal", de Roman Polanski. Decobri-me fascinado por aquele estilo de obra, cuja etiqueta de prateleira viria a descobrir mais tarde: Horror Psicológico.
Ora, não era justamente isto que eu experimentava durante os meus episódios noturnos? Um horror aparentemente sem justificativas externas a mim, um horror puramente psicológico? Como pesquisador ávido, e auto-didata voraz, não demorou para que me deparasse com o nome do senhor Howard Philips Lovecraft, o autor do seguinte recorte:

"A emoção mais forte e mais antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e mais antiga de medo é o medo do desconhecido. Poucos psicólogos contestarão esses fatos e a sua verdade admitida deve firmar para sempre a autenticidade e dignidade das narrações fantásticas de horror como forma literária."

O curioso é que nesse tempo todo eu jamais pensei em buscar a "cura" para a minha enfermidade. E em vez de correr atrás de obras e pesquisas que apontassem para a eliminação dos episódios, eu passei a me interessar mais ainda pela literatura do horror psicológico, considerando-a enteógenos verbais.



Aos 23 anos fui surpreendido por mais um episódio de pavor noturno, que teve a peculiaridade de durar mais que os anteriores.



No outro dia na velha tentativa de recordar proustianamente do ocorrido, me senti irresistivelmente movido a escrever. Claro que não tinha nada de objetivo a escrever. Escreveria qualquer coisa. Assim surgiu um poema que destoava de todos os espécimes da minha pequena monhtanha de versos adolescentes. A sensação geral evocada não se apresentava somente ao meu cérebro. Tomava-me por inteiro, e servia de combustível para os escritos. Mas é bom ressaltar que quando escrevo, não procuro deixar o leitor com medo, ou expressar em palavras o medo que senti. Mesmo por que não sei precisar a sensação dos episódios como MEDO. Inclusive percebo claramente a fronteira que separa a sensação do pavor noturno, do medo quotidiano que todos nós sentimos em meio à urbis.



Ainda hoje eu percebo que meus episódios influenciam de certa forma a minha escrita, que se tornou progresssivamente menos "realista" e explicitamente confessional. (Embora eu ache-a mais realista e confessional do que quase tudo que vejo em obras hodiernas). Mas tal influência não se dá mais como quando daquele episódio dos 23 anos, pois agora eu tento seguir o fio (torto) da meada de uma poética, e desenvolvê-la apartir disso.



E para os que acharem que eu estou apenas inventando uma patologiazinha visando parecer mais problematicozinho pseudo-lovecraftiano, perguntem ao quadrinista/escritor/desenhista/ilustrador Jorginho (http://bostamcity.blogspot.com/), que é meu tio, e presenciou o meu último episódio de terror noturno.



Abraço a todos, e fiquem com o tal poema pós-episódio de terror noturno:



Há visões noturnas,

há sonhos asfixiantes,

há gritos na madrugada

e a cama inundada em suor.

Mas àquele que vencer

será dado o Selo de Caim,

os Olhos da Serpente,

o Fogo Prometeico,

& a Cauda do Portador da Luz.

E ele habitará a Terra de Nod,

onde brotam nascentes

com a doce saliva de Sophia.

Mas cuidado,

os guardiões da Fonte são de fogo,

e seus gládios, impiedosos.

Declame a sentença correta,

e jamais esquecerás de quem tu és.





NOTAS:

1.Para melhor fruição do poema, pesquise sobre o mito do Rio Letes e seus Guradiões; Prometeu; e sobre o mito de Caim e a Terra da Fuga.

2.De tudo isso não decorre que minha produção é resultado de um processo simplista. Expus aqui apenas um recorte do meu processo de criação.

Nenhum comentário: